
A TRINDADE É UM CONCEITO ORIGINAL NO JUDAÍSMO E NO ANTIGO TESTAMENTO?
A doutrina da Trindade, pilar central do cristianismo, define Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, três pessoas coeternas e consubstanciais. Contudo, a origem desse conceito tem sido objeto de intenso debate, com muitos questionando se ele encontra respaldo no judaísmo e no Antigo Testamento (A.T.), ou se emergiu exclusivamente no contexto cristão. Este artigo busca analisar, através de uma abordagem hermenêutica e exegética, as possíveis bases trinitárias no A.T. e na tradição judaica, explorando as diferentes interpretações e o desenvolvimento histórico do conceito.
O MONOTEÍSMO ESTRITO NO JUDAÍSMO
O judaísmo se distingue por sua rigorosa adesão ao monoteísmo, expressa de forma paradigmática no Shema (Deuteronômio 6:4): "Ouve, ó Israel, o SENHOR nosso Deus é o único SENHOR." Esta passagem, central à fé judaica, enfatiza a unicidade absoluta de Deus, levando a maioria dos estudiosos judeus a rejeitar qualquer noção de pluralidade na divindade. No entanto, alguns estudiosos cristãos argumentam que certos textos do A.T. revelam uma complexidade intrínseca à unidade divina.
PLURALIDADE NA DIVINDADE NO ANTIGO TESTAMENTO?
Diversos textos do A.T. são frequentemente citados como potenciais indicações de pluralidade dentro da divindade, embora suas interpretações variem significativamente entre o judaísmo e o cristianismo.
2.1 O Uso do Plural para Deus (Elohim)
A palavra hebraica Elohim (אלהים), embora gramaticalmente plural, é geralmente usada com verbos e pronomes no singular, sugerindo um plural de majestade ou intensidade. Contudo, passagens como Gênesis 1:26 ("Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança") e Gênesis 11:7 ("Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua") apresentam pronomes plurais referindo-se a Deus.
- Interpretação Judaica: A maioria dos rabinos interpreta esses plurais como Deus falando com sua corte celestial (anjos) ou como um plural de majestade, enfatizando a grandeza divina sem implicar pluralidade de pessoas.
- Interpretação Cristã: Cristãos veem nessas passagens uma insinuação da Trindade, sugerindo uma pluralidade dentro da unidade divina.
2.2 A Figura do "Anjo do Senhor"
O "Anjo do SENHOR" aparece em diversas passagens (Êxodo 3:2-6, Juízes 13:17-22) como um ser que, ora se distingue de Deus, ora se identifica com Ele, gerando interpretações diversas.
- Interpretação Judaica: Rabinos como Rashi e Maimônides interpretaram o "Anjo do Senhor" como uma manifestação de Deus, um mensageiro divino, mas não como uma pessoa distinta dentro da divindade.
- Interpretação Cristã: Teólogos cristãos interpretam essas manifestações como teofanias ou cristofanias, sugerindo a presença pré-encarnada do Filho de Deus no A.T.
2.3 O "Filho do Homem" em Daniel 7:13-14
Em Daniel 7, o "Filho do Homem" recebe "domínio, glória e um reino eterno" do "Ancião de Dias".
- Interpretação Judaica: A interpretação judaica tradicionalmente vê o "Filho do Homem" como representando o povo de Israel ou uma figura messiânica humana.
- Interpretação Cristã: O Novo Testamento (Mateus 26:64) interpreta essa passagem como uma referência a Jesus Cristo, vista por estudiosos cristãos como uma pista de distinção entre pessoas dentro da divindade.
2.4 O Espírito de Deus (Ruach)
O A.T. menciona frequentemente o "Espírito do Senhor" (Ruach), atuando de maneira pessoal e independente (Gênesis 1:2, Isaías 63:10).
- Interpretação Judaica: No judaísmo, o Espírito de Deus é geralmente entendido como a força ativa de Deus no mundo, não como uma pessoa distinta.
- Interpretação Cristã: Cristãos veem essas passagens como indicativas da terceira pessoa da Trindade.
O CONCEITO TRINITÁRIO NO JUDAÍSMO PÓS-BÍBLICO
O judaísmo rabínico rejeita a Trindade, mas ideias como a Shekinah (presença manifesta de Deus), o Memra (Palavra de Deus) nos Targumim, e as "Duas Poderosas no Céu" (em textos antigos) revelam complexidade na unidade divina.
- Shekinah: A presença divina manifesta na terra, considerada uma manifestação da glória de Deus.
- Memra: A "Palavra de Deus" personificada nos Targumim, com paralelos ao Logos de João 1, embora não implique uma pessoa distinta na divindade judaica.
- Duas Poderosas no Céu: Textos antigos que sugerem duas manifestações divinas, embora controversas e não centrais ao pensamento judaico tradicional.
DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA TRINDADE NO CRISTIANISMO
O conceito de Trindade desenvolveu-se gradualmente no cristianismo primitivo, influenciado pelas interpretações do A.T. e pela experiência da comunidade cristã com Jesus Cristo e o Espírito Santo. Concílios ecumênicos, como o de Niceia (325 d.C.) e o de Constantinopla (381 d.C.), formularam a doutrina trinitária, estabelecendo a igualdade e coeternidade das três pessoas divinas.
VISÃO DE ESTUDIOSOS MODERNOS
- Estudiosos Judeus: Continuam a enfatizar a unidade absoluta de Deus, interpretando os textos do A.T. dentro de um contexto monoteísta estrito. Nomes como Martin Buber e Abraham Joshua Heschel reforçaram a importância da unicidade divina.
- Estudiosos Cristãos: Há um amplo espectro de interpretações, com alguns defendendo a presença de "germes" trinitários no A.T., enquanto outros enfatizam a revelação progressiva da Trindade no Novo Testamento. Nomes como Karl Barth e Wolfhart Pannenberg exploraram profundamente a doutrina da trindade.
CONCLUSÃO
A doutrina da Trindade não está explicitamente formulada no A.T. ou no judaísmo original. No entanto, textos e conceitos do A.T. sugerem uma complexidade na unidade divina, que o cristianismo desenvolveu em sua doutrina trinitária. A interpretação desses textos continua a ser um ponto de debate entre judeus e cristãos, refletindo suas diferentes compreensões da natureza de Deus. Para o cristianismo, a revelação plena da Trindade ocorreu com a encarnação de Cristo e a descida do Espírito Santo. Para o judaísmo, Deus permanece um ser único e indivisível.